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Ponto de Fuga

Ponto de Fuga

Buzinão à luz do dia

Cairo, Egito

24.08.22 | Miguel Frazão

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Sou uma pessoa de impulsos. Talvez por isso seja uma pessoa de arrependimentos. Neste caso não. Estava de férias. Sem as pequenas preocupações diárias, a minha inquietude trata de as arranjar. Não me apetecia ver um filme, é uma atividade parada. Não queria escrever, obrigava-me a pensar. Decidi que estava na hora de tratar da carta de condução. Ocupei algum do meu tempo a organizar papéis e documentos. Dirigi-me até à escola que mais me aconselharam. Estava fechada. Terça-feira de Carnaval.

Menos de um ano depois já tinha a carta provisória na mão, que ainda tremia, tal era a tensão a que o meu corpo fora sujeito nos minutos anteriores. Diz-se que somos aquilo que comemos, mas a forma como conduzimos também diz muito sobre nós. Na velocidade estou dentro dos limites. Os piscas estão lá sempre e o cinto de segurança também. Não me indigno com os erros dos outros porque não gosto de os ver indignados comigo. Conduzo no meu canto. Fora uma ou outra situação em que me meto onde não sou chamado. Nunca buzinei. Por receio dos insultos ou receio de estar a fazê-lo sem justificação. Quer dizer, agora já posso dizer que buzinei. Num carro que não era meu, em que o condutor não era eu e num país que não era o meu. É tudo uma questão de responsabilidades.

Estava no Egito, o país eternamente conhecido pelos faraós e as pirâmides. O cenário amarelado era efetivamente real. As Pirâmides de Gizé lá estavam. Todas alinhadas com a constelação Órion: a de Quéops, Quéfren e Miquerinos. Pai, filho e neto. Foram construídas há cerca de 5000 anos. Não por escravos, mas por trabalhadores que eram pagos através de comida, cerveja e tratamento médico. A Esfinge também lá estava. Sem o nariz, claro. O Nilo estava sujo. Ao redor, homens e mulheres tinham o corpo coberto com roupa de cima a baixo. Os seus trabalhos são duplamente cansativos. Cada cliente é uma luta e, na hora de prestar o serviço, a energia está já reduzida a metade. Os fotógrafos de rua convenciam os turistas de que mereciam registar a sua passagem por ali, os vendedores forçavam-nos a entrar nas lojas e os taxistas tentavam negociar viagens a troco de pequenas quantias que para eles faziam toda a diferença.

É um táxi que me transporta até grande parte daquilo que sei hoje sobre o Egito. Saio do hotel onde estava hospedado, no Cairo, com o centro da cidade como destino final. O código da estrada é o resultado do bom senso. Os peões atravessam devagar para que todos os veículos se possam desviar a tempo. A buzina é a forma de comunicação mais eficaz. Entro num táxi cujo motorista concordou com o preço proposto. No “lugar do morto”, aprecio a perícia com que a viatura é conduzida. De um lado e do outro veem-se edifícios parcialmente construídos. O taxista recorre à buzina com frequência. Também queria carregar no botão. O meu inglês não foi suficiente. A língua gestual produziu outro efeito. Assentiu com um sorriso. Buzinei uma e outra vez, às quais se seguiram outras tantas. Era apenas mais uma pessoa a buzinar ali. Senti um alívio. Não havia reações no exterior. A vida daquelas pessoas permanecia agitada. Tenho de repetir a experiência em Portugal, pensei.

Aterrei em Lisboa, apanhei as malas e saí do aeroporto. Entretanto fui de férias. Já regressei e já peguei umas quantas vezes no carro. Ainda não foi desta que buzinei.

Vende-se beleza a granel

Antalya, Turquia

24.08.22 | Miguel Frazão

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Liguei o computador na esperança de localizar rapidamente a Turquia no mapa. Estamos no ponto de transição entre a Europa e a Ásia, em que, tal como acontece na zona onde o rio se cruza com o mar, os elementos de um misturam-se com os do outro. O islamismo, judaísmo e cristianismo coabitam num espaço que outrora pertenceu aos bizantinos e otomanos. Os primeiros foram expulsos pelos segundos, que, por sua vez, foram traídos pela aliança secreta que fizeram com a Alemanha na I Guerra Mundial. De Bizâncio a Constantinopla e de Constantinopla a Istambul, a evolução do nome da capital traduz a história de um país que hoje é também centro de decisões europeias.

Passei uma semana em Antalya, uma cidade a pouco mais de 700 Km de Istambul. Apesar de diferente, a cultura não me chocou. Talvez me tenha surpreendido apenas com as chamadas para as orações que são feitas a meio da noite. O anúncio surge do alto do minarete, a torre que integra as mesquitas. Existem cinco orações muçulmanas obrigatórias: Fajr, Dhuhr, Asr, Maghrib e Isha. A hora depende sempre da posição do sol.  

No dia de regresso a Lisboa acordei antes das seis da manhã. A chamada para a oração serviu de despertador. Faltava algum tempo para chegar a carrinha que nos ia levar para o aeroporto. Sentei-me numa espreguiçadeira junto à piscina a comer uma laranja. É claro que a meio da minha refeição improvisada, o autocarro chegou, uma metade da laranja ficou por comer, e a outra nas minhas mãos e roupa. Chego à fila para o avião a desejar sentar-me e cair num sono profundo. Enquanto espero, faço o pouco que posso. Olho à volta. Uma senhora surge com o nariz todo enfaixado. Ao lado, um senhor tem uma ligadura à volta da cabeça. Mais à esquerda, uma rapariga com uns lábios enormes e, mais à frente, uma outra com feições que me parecem pouco naturais.  

A Turquia é a capital europeia do implante capilar e cirurgia estética. O tempo transforma-nos e alcançar a nossa definição de perfeição torna-se uma tarefa cada vez mais exigente. Confesso que também eu tenho medo de perder o cabelo. E cabelos brancos? Sei que vou querer arrancá-los um a um ou até mesmo pintá-los. Mas também sei que, no dia seguinte, vou ver-me ao espelho e já lá estão mais cinco ou seis, que de repente triplicam e a partir daí é sempre somar. As rugas também hão de aparecer. O botox pode ser a solução, mas acaba por ser como as muralhas de areia que construímos na praia para evitar o avanço do mar. Estamos apenas a adiar a escrita de uma história que precisa mesmo de mais uma linha para que possa encontrar um desfecho.  

Nas redes sociais, cada vez mais se tem normalizado tanto as transformações naturais do corpo, como o recurso a procedimentos estéticos. Ainda bem que assim o é. É urgente sentirmo-nos bem. Uma vez adquirido o voo para a Turquia, resta-me apenas aconselhar a compra de um creme de rosto com ácido hialurónico. A pele fica hidratada, não há efeitos secundários, nem é preciso ficar o mês seguinte privado de apanhar sol. Não é todos os dias que se pode mergulhar nas águas quentes do Mediterrâneo.

T-shirt, calções e pé descalço

Cacela Velha, Algarve

24.08.22 | Miguel Frazão

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Na aldeia histórica de Cacela Velha, as caravanas não entram. Os carros ficam à porta e as bicicletas têm o mesmo destino. Na ausência das estruturas de ferro a que o nosso bom português apelida de parque de bicicletas, lá tive de obrigar o meu veículo de duas rodas a abraçar-se a um poste que segurava uma placa informativa.

Ao longe vê-se uma multidão de pessoas, num cenário em que o espanhol se sobrepõe à língua de Camões. Pais, tios e avós carregam às costas chapéus de sol, cadeiras, geleiras e toda uma panóplia de insufláveis muitas vezes já cheios. As crianças limitam-se a correr de um lado para o outro. Tudo merece a sua atenção, desde as casas caiadas de branco com as portas e janelas pintadas de azul ou amarelo, a vista para o Parque Natural da Ria Formosa e as pequenas lojas que vendem tudo aquilo que pode deixar uma criança feliz nos minutos seguintes. Nem calculam que as pedras da calçada que pisam estão dispostas sobre uma arriba fóssil com cerca de um milhão de anos.

Olho para Cacela Velha como uma representação em tamanho real de quando em miúdo brincava aos piratas. Havia sempre um ponto alto a partir do qual se controlava a aproximação de embarcações perigosas. Aqui, é a fortaleza que assume a função de proteção. Em tempos foi um castelo de mouros, mas depois de voltar a ser tomado pelos portugueses serviu de apoio à reconquista de Tavira, Silves e Aljezur. A cisterna, que se encontra ao pé da Igreja Matriz, é também uma herança dos árabes. Nas minhas brincadeiras este elemento não existia. A água estava sempre garantida. Apenas gostava que a minha mente tivesse tido a capacidade de imaginar cidades em que as ruas adotassem os nomes daqueles que mais a marcaram. A passagem do poeta árabe, Ibn Darraje Al-Castalli (nascido em Cacela no ano de 958), pela aldeia, assim como de Sophia de Mello Breyner Anderson e Eugénio de Andrade ficou eternizada nas paredes que dão forma a esta região do concelho de Vila Real de Santo António.

Se na Idade Média se andava por Cacela Velha de espadas e escudos, hoje quem por lá passa vai de t-shirt, calções e pé descalço. Andar de pé descalço é também uma arte. Para se chegar à paradisíaca praia de Cacela Velha, há que pisar os grãos de areia certos. Os picos não escolhem género nem idade. Só precisam de um pé para se alojar. Ao longo do meu percurso, que não foi feito de pé descalço, ouvi bastantes interjeições e locuções interjetivas de dor por parte dos transeuntes. Há que haver sensibilidade para saber identificar em que momentos é tão precioso enfiar o dedo na chanata. Para quem não gosta do desafio de fazer a travessia pelo próprio pé ou tem mobilidade reduzida, há sempre a opção do barco. Algumas moedas são suficientes para evitar a experiência de se afundar no lodo.

A hora de jantar aproxima-se e a multidão que há pouco lutava por um lugar na praia, agora espera numa longa fila para os comes e bebes. A t-shirt, os calções e o pé descalço ficam para trás, e entra no outfit a camisa de verão, as calças de sair à noite e o melhor par de ténis. Já na Ria Formosa, há quem continue de pé descalço enfiado na areia para que as conquilhas e as ameijoas possam chegar aos pratos.