Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Ponto de Fuga

Ponto de Fuga

Viva os noivos

Évora, Alentejo

27.10.22 | Miguel Frazão

Évora.jpg

Todos podemos viajar. Uns mais do que outros. “O que talvez não esteja ao alcance de todos são a experiência, o engenho e a erudição necessários para perceber que cada viagem é única” (1). Aprendi-o com Gonçalo Cadilhe. Parto sempre em busca de alargar a tal “experiência”, “engenho” e “erudição”. Talvez por isso tenha entrado em Évora com o mesmo sentimento de José Luís Peixoto assim que se achou no Sardoal. Estou dentro de um livro. “Cada passo que dês a partir daqui, cada palavra que digas ou penses pertencerá a esse livro” (2). Assim foi.

Estou sozinho. Por escolha. As habituais conversas que nos permitem criar memórias coletivas dão lugar à observação. O GPS serve para me orientar no percurso entre o autocarro e o Jardim Público. A brevidade da vida humana é relembrada uns metros mais à frente. Entro na Capela dos Ossos. A partir do terraço, vejo a Sé. Largo as algemas que me prendem à voz que me dirige para sudoeste quando nem sei onde está o norte e o sul. Estou livre. Já posso chegar à Praça do Giraldo vindo de cima ou de baixo. Simplesmente, de onde calhar. E descobrir por mim próprio que esta serve de homenagem à figura histórica que conquistou Évora aos mouros e a ofereceu a D. Afonso Henriques. Geraldo Sem Pavor.  

Há tempo. Deixo o imediatismo por umas horas. Percorro as estantes de uma livraria. Sento-me no sofá que se enchia de leitores num antigamente que nunca presenciei. Atrás de mim, um pai e uma mãe conseguem adormecer o filho de apenas umas semanas. O tempo está a contar. Agora também eles têm tempo para escolher os livros que vão ler à criança. “Já disse que não gosto da história do patinho”, diz o pai. Não sei o que acabaram por levar. O bebé acordou e a saída foi feita à pressa.

Encontrei de novo o casal durante a minha visita ao Templo de Diana. Quer dizer, ao Templo Romano. Está provado que foi construído para vangloriar o Imperador Augusto e não a Deusa da Caça. Pai, mãe e filho faziam a primeira viagem a três. Não inventei. Eles é que o disseram. Pediram a uma turista que lhes tirasse uma fotografia. A primeira. A “fotógrafa” recebeu um abraço e algumas palavras de apreço. Tal como o músico de rua que brindou quem por ali passava com uma nova versão de Stand By Me, de Ben E. King, entre outras canções. “Gosto da tua música”, disse um rapaz. O som das moedas a cair no saco da guitarra ditavam o sucesso da sua atuação.

Afeto nunca faltou naquela tarde de sábado. Os turistas eram essencialmente casais. Uns mais novos, outros mais velhos. Para além dos recém-casados. Na Igreja da Graça, os convidados formavam um corredor para receber os noivos e atirar-lhes arroz. O carro já estava preparado para seguir para o copo de água. Ali perto, outros noivos estavam já numa fase mais adiantada do processo. A sessão fotográfica. Pareciam felizes. Talvez não soubessem que Évora fora o palco de um dos casamentos mais desastrosos da História de Portugal. D. Pedro e Constança Manuel. Sucedeu uma traição. O filho de D. Afonso IV apaixonou-se por Inês de Castro. A amante acabou assassinada e D. Pedro liderou uma revolta contra o pai.

O desfecho dos casamentos a que agora assisto espera-se diferente. Durem ou não para sempre. Por isso, viva os noivos.

 

 

1 Sinal de GPS Perdido / Gonçalo Cadilhe. – 1ª ed. – Lisboa : Clube do Autor

Onde / José Luís Peixoto. – 1ª ed. – Quetzal Editores

No hablo espanhol

Valladolid, Espanha

13.10.22 | Miguel Frazão

valladolid imagem.jpg

Sempre tive problemas com o meu espanhol. As palavras não me saem. Por mais parecidas que sejam com o português. Quando tenho oportunidade de estudar uma nova língua, o espanhol fica de fora. Oriento-me quando for preciso, penso. Escolho outro idioma. Mas na hora de decidir entre um “Buenos Dias” ou um simples “Hola” as dúvidas são muitas. Tantas quanto as que existem acerca do país de nascimento de Cristóvão Colombo. Há quem acredite que tenha sido em Itália. Outros pensam que foi em Espanha ou mesmo em Portugal. Uma coisa é certa. Morreu em Valladolid, em 1506.

A Praça Colón, em Valladolid, serve de homenagem ao explorador que pensou ter descoberto a Índia, quando, na verdade, estava em Hispaniola, uma terra que fica entre o Haiti e a República Dominicana. Passei pela praça num dos quatro dias em que estive na província espanhola que pertence à Comunidade de Castilla Y León. A cidade é atravessada pelo rio Pisuerga. Um afluente do Douro. As ruas são estreitas. Rodeiam-se de prédios cujos tijolos não têm qualquer pintura sobre a sua cor natural. As varandas refletem a personalidade de quem habita aqueles apartamentos. Umas servem apenas para guardar o estendal. Outras são autênticas arrecadações. Veem-se móveis, cadeiras de gaming e figuras em pedra. Na “Peluqueria”, as clientes conversam com as cabeleireiras enquanto aguardam que lhes tirem o pedaço de alumínio que cobre a cabeça ou os rolos que vão formar caracóis num cabelo que teima em ser liso. Na “Churreria”, as pessoas locais fazem o mesmo que nas “Tapas e Copas”. Comem e bebem. O sabor dos calamares sobrepõe-se ao do vinho. Ou vice-versa. Nunca saberei dizer. Não bebo vinho.

Há sempre gente na rua. De manhã, as portas dos prédios abrem-se para as crianças de lá saírem de mochila às costas. As aulas começaram. Uns vão de trotinete. Outros seguem a pé com os pais. As mesas das esplanadas ainda fechadas enchem-se daqueles que já anseiam uma pausa. A cada esquina, os quiosques de revistas e jornais lucram à conta da vitória da extrema direita nas eleições italianas. Para não falar da “supertristeza” da Shakira.

As conversas de rua entram-me pelos ouvidos. Não que me queira intrometer. Apenas procuro a confirmação de quão má é a minha compreensão da língua. Abordaram-me algumas vezes. Se calhar ouviram-me falar português. Diria que não. Suponho que foi pela quantidade de malas que levava comigo. Muitas vezes, um sorriso chegava. As perguntas mais elaboradas, mereciam respostas igualmente elaboradas. Aí não estive à altura. Optei sempre pelo riso com som. E seguir caminho. Na esperança de não me cruzar com mais curiosos.

Falavam comigo à mesma velocidade do que com o vizinho que toda a vida pronunciou os dois “ll” como se fosse um “lh” e o “ñ” como se fosse um “nh”. Confesso que as minhas interações nunca acompanharam esse ritmo elevado. Aventurei-me também em algumas palavras que não monossílabos. No fundo, o meu espanhol não passa do meu melhor português acompanhado de uma ligeira acentuação. Daí ter cometido o erro de dizer “guardanapos” em vez de “servilletas” e “meias” ao invés de “calcetines”. O meu interlocutor não compreende. Encolhe os ombros. Retribuo o gesto. Fico embaraçado. Recorro à língua gestual. Se é que lhe posso dar esse nome. Cruzo palavras e apontares de dedos. Nada. Resta-me um último recurso. Dizer “No hablo Espanhol” na língua que afirmo não conhecer.