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Ponto de Fuga

Ponto de Fuga

Para além da Taprobana

29.09.22 | Miguel Frazão

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Medo. No dicionário é descrito como um “sentimento de inquietação que surge com a ideia de um perigo real ou aparente”. Não é um sentimento recente. A História de Portugal remete-nos para este conceito. Os Descobrimentos. A chegada de Bartolomeu Dias ao Cabo das Tormentas, em 1488. Começámos pelo Norte de África. Queríamos ocupar o espaço daqueles que no passado invadiram o que era nosso. Descemos o Atlântico percorrendo o recorte da costa litoral africana. Havia um limite. Imposto por nós. Houve sempre algo para lá dele. E os portugueses ultrapassaram-no. Abrimos caminho para a descoberta de uma rota marítima para a Índia. O Infante D. Henrique, Bartolomeu Dias, Pedro Álvares Cabral e Vasco da Gama desafiaram os mares tenebrosos e as grandes tempestades. Inovaram a ciência náutica, a cartografia e a astronomia. Venceram o medo. Mas o Cabo das Tormentas continua a existir. Não tem necessariamente de separar o Atlântico do Índico. Cada um tem o seu. Ou os seus. Alguns deixaremos de ter. Outros permanecerão para sempre.

Continuo na fila para entrar no avião. Sou dos primeiros. Avizinha-se um pequeno atraso. As pessoas empurram-se na tentativa de chegar mais depressa a um lugar onde todos chegaremos ao mesmo tempo. Uma senhora, com a ajuda de fitas separadoras, organiza as filas. Sem sucesso. Minutos depois, o embarque começa. Passei o meu Cabo das Tormentas. Consegui que não levassem a minha bagagem para o porão. Dispenso que a minha roupa corra o risco de nunca mais reencontrar o meu corpo.

Entro no avião e procuro o meu lugar. Sou à janela. O melhor que me podia acontecer. Cruzo as pernas. Descruzo-as. Cruzo de novo. Fecho os olhos. Abro-os. Ajeito-me na cadeira. Encontro uma posição onde aguento mais de meio minuto. A minha mão direita percorre o braço do assento na expectativa de encontrar o botão, que, ao carregar, leva o corpo a inclinar-se ligeiramente para trás. Estás na classe económica, disse-me uma voz interior. Desisti. Sentei-me como uma pessoa normal. Acompanhei o percurso de quem chegava. Um casal jovem sentou-se umas filas à minha frente. Levantaram-se logo de seguida. Dirigiram-se à cabine. Ela com o ritmo cardíaco elevado. Ele com um sorriso envergonhado. A rapariga assumiu à hospedeira o seu medo de andar de avião. O som da descolagem é o Adamastor que Camões diz ter “a boca negra, os dentes amarelos”; a turbulência revela o seu aspeto “disforme e grandíssima estrutura”, enquanto o barulho do trem de aterragem se assemelha ao Mostrengo a que Fernando Pessoa se refere para personificar os perigos que os portugueses enfrentaram nas expedições marítimas.

Quis ter a oportunidade de lhe dar um pouco do meu conforto. Impossível. Pensei sobre o medo. Reparei que é difícil traduzir o medo por palavras. É um estado de alerta. Sem ele já estaríamos mortos. Refletimos sobre comportamentos e consequências. Não tenho medo de ter medo. Temo apenas aquele medo que nos impede de viver. Talvez por isso, no estrangeiro deixo que um desconhecido se aproxime mais do que deixaria se estivesse em Portugal. É o meu cérebro a tentar controlar o que é incontrolável. Tenho conseguido. Mas é como se estivesse totalmente desprotegido.

Também a rapariga do avião está desprotegida. Pelo menos a Milão chegou. Venceu o medo. Ou deixou-se vencer por ele. O medo não é mais do que a camisola que vestimos para nos resguardarmos do frio. Só não podemos querer vestir três casacos numa tarde de 40 graus.

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